A título de introdução, o foco principal do período quaresmal são os exercícios físico-espirituais do jejum, da esmola e da oração. São oportunidades proporcionadas pela Igreja que atualizam os fiéis no seguimento de Jesus Cristo durante a Quaresma.
O jejum consiste no esvaziamento de si mesmo, que desperta a fome de Deus e a disposição para saciar a fome dos irmãos. A esmola é uma prática evangélica da partilha. A oração abre o coração e a mente para as manifestações amorosas de Deus.
O jejum, a esmola e a oração juntos despertam para a completude em Deus, provocando uma transformação e conversão para Cristo Ressuscitado.
Não obstante, desde 1964, à luz da renovação da Igreja, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) apresenta a Campanha da Fraternidade (CF) como um caminho de conversão pessoal, comunitário e social para o período quaresmal. O tema deste ano é “Fraternidade e políticas públicas”, e o lema é “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27).
O objetivo geral da CF 2019, portanto, consiste em “estimular a participação em políticas públicas, à luz da Palavra de Deus e da Doutrina Social da Igreja para fortalecer a cidadania e o bem comum, sinais de fraternidade” (Texto-Base, n. 12).
De acordo com o Mestre em História e Diretor Geral do Colégio Estadual Arnaldo Busato, de Coronel Vivida (PR), Cleverton Luiz da Silva, a população está tendo mais consciência em relação à importância das políticas públicas. “Esse processo é lento, tendo em vista que depende das discussões e das oportunidades de conhecimento dessas políticas através dos agentes públicos. A proposta da CNBB, neste sentido, é extraordinária, pois a Igreja consegue chegar a quase todos os lugares. Nisso se dá uma união entre Igreja, família, escola e agentes públicos para melhorar os serviços e oferecer uma melhor qualidade de vida para a população”.
Além disso, a CF acontece no mesmo ano em que o Papa Francisco declara o mês de outubro como o “Mês Missionário Extraordinário”, tendo como tema “Batizados e enviados: a Igreja de Cristo em missão no mundo”. Nesta mesma direção, é válido lembrar que a Igreja do Brasil vivenciou o Ano do Laicato com a proposta evangélica de ser “Sal da Terra e Luz do Mundo” (Mt 5,13-14). Como se vê, são muitas as motivações que conduzem à ação concreta evangelizadora em prol do bem comum. Deste modo, segue uma ponderação do Texto-Base que aborda o tema a partir do método ver, julgar e agir.
POLÍTICAS PÚBLICAS
O tema políticas públicas deste ano impacta diretamente na vida dos brasileiros, sobretudo dos mais vulneráveis. Mas antes de tudo, faz-se necessário entender o conceito, pois políticas públicas é diferente de falar de “política” e de “eleições”. Políticas públicas, por sua vez, se refere “a um conjunto de ações a serem implantadas pelos gestores públicos, com vistas a promover o bem comum, na perspectiva dos mais pobres da sociedade” (Texto-
Base, n. 13). São ações e programas desenvolvidos pelo Estado para garantir e colocar em prática os direitos previstos na Constituição Federal e outras leis do país.
A palavra “política” vem do grego politikós, que se refere a pólis, que significa cidade, onde os gregos tomavam as decisões em prol do bem comum. Para eles, é na cidade que se dá o conjunto das relações e das organizações dos cidadãos. Já o conceito de políticas públicas é recente e diz respeito ao papel do Estado, Sociedade Civil e Movimentos Sociais no tocante ao direito à educação, à saúde, aos direitos humanos, à assistência social, à economia, à zona rural, aos direitos das mulheres, crianças, adolescentes, jovens, famílias e idosos etc. São responsabilidades do governo, mas “é importante a presença da Igreja Católica, por meio do clero e dos leigos, na busca, na participação e na resolução dos problemas sociais e em todo processo de formulação das políticas públicas” (Texto-Base, n. 27).
O poder público, constituído na forma de República Federativa Presidencialista no Brasil, é composto pela União, Distrito Federal, 26 estados e 5.570 municípios. E conta com uma estrutura político-administrativa (Estados) organizada em três poderes independentes e “harmônicos”: judiciário, legislativo e executivo. Todos devem estar a serviço da população, na resolução de problemas e na garantia dos direitos resguardados pela Constituição.
As políticas públicas no Brasil são divididas entre políticas de Estado e as de governo. As políticas de Estados são amparadas pela Constituição e as de governo são especificadas por cada novo governo. Todas, porém, são sustentadas pelos recursos dos cofres públicos, ou seja, pelos impostos.
Atualmente, o modelo de democracia representativa que ocupa os cargos eletivos (presidente, governadores, prefeitos, deputados, senadores e vereadores) está em crise. Por outro lado, por parte da população, não basta apenas votar nas eleições, mas sugerir demandas pontuais através dos mais diversos mecanismos de participação, que contribuam na tomada de decisões, implementação, avaliação e monitoramento nas políticas públicas (cf. Texto-Base, n. 94).
A humanidade sempre superou grandes dificuldades com ações e decisões coletivas. As formas mais comuns de participação em nosso país são audiências públicas, conselhos gestores, conferências, fóruns, reuniões, organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
DIREITO E JUSTIÇA NAS SAGRADAS ESCRITURAS
No Antigo Testamento (AT), a palavra “direito” era utilizada para designar a ordem justa da sociedade, mas que nem sempre é respeitada na prática, por isso, vem acompanhada pela palavra “justiça”, que é o ‘‘fundamento do direito, a obrigação moral do direito em sentido subjetivo” (Texto-Base n. 110). Ainda no AT, a justiça é a razão da tríade preocupação: a viúva, o órfão e o estrangeiro.
Também no AT são muitas as referências e manifestações proféticas que clamam por justiça. Reivindicam o direito sobretudo para o atendimento aos mais pobres. O profeta Isaías afirma: “Se deres do teu pão ao faminto, se alimentares os pobres, tua luz levantar-se-á na escuridão e tua noite resplandecerá como o dia pleno” (Is 58,10). Além disso, o lema da CF é extraído do mesmo profeta: “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27).
No Novo Testamento (NT), muitas vezes, Jesus convive com o fenômeno do Estado e do exercício de poder por determinadas lideranças políticas. Repetidamente ele se encontra com os mais frágeis e vulneráveis. Os famintos ganham destaque na narrativa da multiplicação dos pães (Mt 14,13-21; Mc 6, 30-44; Lc 9, 10-17; Jo 6,1-15) e dos seus ensinamentos, pois ele veio para salvar e mostrar a vida boa do Evangelho. Para todos oferecia o alimento espiritual dos seus ensinamentos e também o pão para saciar a fome das multidões como sem pastor.
No contexto do ver, na história da revelação de Deus, desde os sábios do antigo Israel, os profetas, e até Jesus Cristo, todos souberam formular críticas à sociedade, às ideologias e à religião quando os menos favorecidos estavam sendo desatendidos em suas necessidades básicas. Jesus, por sua vez, tem uma atenção toda especial para com os doentes, as crianças, as mulheres, os trabalhadores, os pobres, os excluídos, os pecadores etc. Além disso, Jesus bateu de frente com as diferentes situações de exploração, escravidão e corrupção vigentes na sua época.
Nos Evangelhos, até os opositores de Jesus, tanto em termos religiosos como políticos, o descrevem como quem “era verdadeiro” e como quem, “segundo a verdade, ensinava verdadeiramente o caminho de Deus”, sendo que, por “não se preocupar com quem quer que fosse” e por “não olhar para a aparência dos homens”
(Mt 22,16; Mc 12,14; Lc 20,21), guardava o princípio da equidade, da fraternidade. “Esse princípio também é vital na procura por políticas públicas éticas e justas, capazes de assegurar direitos sociais aos mais frágeis e vulneráveis” (Texto-Base, n. 144).
CONTRIBUIÇÃO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
No contexto do julgar apresentado no Texto-Base, há a contribuição da Doutrina Social da Igreja, que é fruto das Sagradas Escrituras e da fé viva da Igreja. A contribuição se volta para a dignidade da pessoa humana, com especial atenção aos sofrimentos dos mais pobres, que são presença de Cristo (Mt 25,31ss).
A Doutrina Social da Igreja não é uma mera teoria social, ela tem uma finalidade prática, evidenciada pelos Pontífices (papas). As diversas encíclicas dos papas são ensinamentos, apontamentos e direcionamentos aos fiéis no tocante às situações que ferem a dignidade da pessoa humana. São João Paulo II, por exemplo, falou de “pecado social e de estruturas de pecado” e disse que é um dever do cristão mudar essas estruturas que obstaculizam o Reino de Deus, sendo essa “uma tarefa que exige coragem e paciência” (cf. Texto-Base, n. 158).
O princípio da participação dos cristãos leigos e leigas é muito presente na Doutrina Social da Igreja, que pede aos cidadãos intervenção nas tarefas governamentais, exercendo sua cidadania em prol do bem comum, sendo uma mediação concreta da caridade, no vasto mundo da política, da economia, dos meios de comunicação social e da cultura.
PARTICIPAÇÃO, CIDADANIA E BEM COMUM
O terceiro passo evidenciado pelo Texto-Base é o do agir e chama a atenção para a necessidade de superar o dualismo existente entre a fé e a política. Este é um elemento importante na Campanha da Fraternidade 2019, pois “fraternidade e políticas públicas fazem parte da vocação humana e devem nortear as ações dos homens e mulheres que, na política, defendem a dignidade humana” (Texto-Base, n. 196).
Ainda é muito presente na Igreja e na sociedade hodierna a dicotomia entre fé e vida. Existe uma espiritualidade desencarnada da realidade social cotidiana, às vezes, consciente e outras vezes inconsciente. Para superar essa dificuldade, faz-se necessário reconhecerem-se filhos e filhas de Deus e se darem conta de que todos foram criados para cuidar da obra-prima do Criador. É uma conversão bíblico-teológica que leva a ultrapassar as dimensões pessoais, eclesiológicas (visão de Igreja) e sociais.
À luz da fé, o cristão é convocado a participar sistematicamente nos conselhos de direito, audiências públicas, nos fóruns, nas pastorais sociais, nas associações de bairro, nas escolas de fé e política, nos partidos políticos. Participação ativa na mídia tradicional, internet e mídias sociais. Além disso, “convidar e promover a juventude ao engajamento e à participação política, não apenas o incentivo e esclarecimento para o voto consciente, mas como assumir o compromisso social com sua comunidade, com seus irmãos em Cristo” (Texto-Base, n. 231).
É preciso educar para o humanismo solidário, para políticas públicas que despertem para a cultura do diálogo, a globalização da esperança, a verdadeira inclusão, as redes de cooperação, a honestidade em prol do bem comum (cf. Texto-Base, n. 232-253).
Nas pistas de ação, apresentadas no Texto-Base, há ainda três palavras-chaves: participação, cidadania e bem comum, tendo como exemplo o Observatório Social do Brasil (OSB). Este “é um espaço para o exercício da cidadania, que deve ser democrático e apartidário e reunir o maior número possível de entidades representativas da sociedade civil com o objetivo de contribuir para a melhoria da gestão” (Texto-Base, n. 253, pista de ação 6).
A última pista de ação sugerida é a Jornada Mundial do Pobre, instituída pelo Papa Francisco, em todo mundo, como sinal concreto do amor de Cristo pelos últimos e os mais pobres.
Enfim, os sujeitos destinatários das pistas de ações são as pessoas em situação de rua, crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, povos e comunidades indígenas e quilombolas, trabalhadores sem-teto, mulheres e homens encarcerados, pessoas com necessidades especiais, doentes, vítimas de violências, catadores e catadoras de material reciclável, comunidades e paróquias, bem como pessoas que necessitam da solidariedade e ações de acolhimento, escuta e mobilização para efetivação dos direitos.
CONCLUSÃO
A Campanha da Fraternidade 2019 é um convite para uma maior participação das pessoas na elaboração e na implementação de políticas públicas, projetando o presente e o futuro do Brasil, amparado no direito e na justiça, livre das desigualdades que atingem os mais pobres, levando-os a uma vida digna, inspirados nas palavras, gestos e obras de Jesus Cristo.
O Dia Nacional da Coleta da Solidariedade será no Domingo de Ramos, 14 de abril de 2019.